CENIE · 23 Janeiro 2023

Sobreviver ao Natal e à Blue Monday: tristeza, solidão e novos propósitos

Ainda estamos de ressaca de festas e de comer em excesso, do bolo-rei e dos  turrões, mas acima de tudo das emoções. O Natal é uma época cheia de significados e memórias, mesmo à parte da religião, que para cada pessoa e para cada família significa algo completamente diferente. Se para aqueles que são religiosos é um ponto de referência (a comemoração do nascimento do bebé Jesus em Belém), não é menos importante para aqueles que não estão a praticar ou mesmo para aqueles que não acreditam. Conheci muçulmanos praticantes que celebram o Natal (não nas suas casas de origem, mas quando convidados para jantar com amigos) e famílias de duas fés que celebram o Natal e Hannukah. É uma etapa comum porque, embora possamos ter diferentes começos do ano (o ano chinês ou o ano judeu não começa a 1 de Janeiro, sendo o Ano Novo chinês guiado pelo calendário lunar e o feriado Rosh Hashana é em Setembro) entendemos que um ciclo se fecha, de certa forma. Um ciclo muito curto, mas que nos faz refletir sobre tudo o que vivemos nesse ano. 

Cada família, cada pessoa até, tende a repetir comportamentos de anos passados ou a tentar imitar certas emoções, cheiros, sabores e sons. Mesmo a pessoa menos supersticiosa come uvas (em Portugal passas) no dia 31, como fazia quando era criança ou como faziam os seus pais. Não são tanto as datas de "pico" (o 24, o 25, o 31 ou o 6 de Janeiro), mas tudo o que lhe está associado. Se pensarmos nisso, é algo surpreendente; nesta altura do ano, tentamos ver os amigos com quem não partilhamos uma mesa há um ano (desde o jantar de Natal do ano passado). Compramos presentes e tentamos celebrar, mesmo que não sintamos razão para tal. Vamos pelas nossas rotas particulares, repetidas ano após ano (para a Praza Maior da cidade, por exemplo, para comprar musgo para o Presépio que teremos tanta preguiça de tirar no dia 7), como fazem milhares de outras famílias. Homogeneizamo-nos, porque se espera de nós que sigamos uma série de comportamentos. Como disse a canção de Mecano, referindo-se aos sinos de 31 de Dezembro, "entre risos e apitos, nós espanhóis fazemos algo ao mesmo tempo por uma vez". 

Para aqueles que não estão familiarizados com esta tradição, em Espanha a 31 de Dezembro comemos as 12 uvas à meia-noite, depois de um jantar caloroso com a família ou entes queridos (os primeiros e os segundos nem sempre coincidem, claro). Em Madrid os mais ousados levam-nas à Puerta del Sol, e em diferentes partes de Espanha nessa mesma noite (antes do jantar, uvas e possíveis Karaokes nas primeiras horas do novo ano) corre-se a San Silvestre. A mais popular em Espanha é a San Silvestre Vallecana, que tem duas edições, a San Silvestre Popular e a San Silvestre Internacional. Chama-se San Silvestre porque a 31 de Dezembro comemora-se o santo padroeiro do último dia do ano, São Silvestre, que foi Papa da Igreja Católica entre 314 e a sua morte em 335, embora não seja necessário saber nada sobre isto para poder correr os 10 quilómetros que esta corrida cobre. 

O Natal, como eu disse, é uma época de costumes estranhos (alguns deles quase saudáveis; corremos e comemos fruta, mesmo que seja apenas uvas e o glacê do bolo-rei) e de multidões. E de nos queixarmos muito, não nos iludamos.

Mas o Natal é também um tempo de reflexão; o ano chega ao fim e tendemos a avaliar o que aconteceu e até a planear o que irá acontecer nos próximos 12 meses. E fazemo-lo ao som de cantigas e filmes de Natal que exaltam a beleza dos humanos e nos quais alguém sempre muito triste com um trabalho sufocante encontra o amor em Vermont. O contexto é justo para pensar que todos são mais felizes e têm melhores relações familiares do que nós, mas mesmo aquela senhora mal-humorada encontrou o amor da sua vida em Vermont! Depois chega Janeiro e perguntamo-nos porque nos sentimos tristes, em baixo e porque é que a nossa casa não tem lareira. 

No final do ano, como se filmes, canções e encontrar o presente perfeito (oh, capitalismo branco) não fossem suficientes, pressionamo-nos a pensar em novos projetos, estabelecemos objetivos (escrever os meus posts a tempo, por exemplo) que não nos farão necessariamente mais felizes e que por vezes nos stressam, mas que também nos ajudam com um certo empurrão. Ano novo, vida nova. Também fazemos o balanço do bom e do mau, e por vezes o mau tem um peso muito grande. Talvez vejamos que não atingimos os objetivos do ano anterior (eu queria perder 3 quilos; agora só me faltam 5 quilos) e que não estamos necessariamente melhor do que estávamos há apenas um ano. Lembramo-nos perfeitamente porque estávamos a fazer exactamente a mesma coisa: avaliar a nossa vida a partir de um ponto fixo, olhando para materiais ou marcos memoráveis. E isto, na realidade, não é muito justo para nós próprios. 

É também uma época em que sentimos falta daqueles que já não estão entre nós. Talvez devido aos costumes que já não podemos partilhar, porque é naqueles dias em que ano após ano partilhávamos espaço em torno da mesma mesa, fazíamos o balanço do ano juntos, ou trocávamos presentes. O Natal era mais real porque havia o riso dessa pessoa. Sentimos a falta destas pessoas quase todos os dias, ou com frequência, mas no Natal parece que esta falta parece tornar-se mais aguda. Pelo menos para mim, faz. 

O Natal, além disso, é uma época não só de grande stress (comprar presentes, embrulhá-los, cozinhar, seguir horários e rotinas diferentes, ver pessoas que não vemos durante o resto do ano, e fazer tudo isto com uma sensação nem sempre autêntica de felicidade) mas também de grande pressão social e em que a solidão nos pode aterrorizar de uma forma extrema. Ai de quem disser que janta sozinho na véspera de Natal... Mesmo que jante sozinho todas as noites do ano. A exaltação da felicidade, da companhia, obriga-nos por vezes a fingir ser o quê e quem não somos. E será estranho sentirmo-nos tristes em Janeiro? Pusemos as nossas emoções em cima da mesa, partilhámos espaço com aqueles que normalmente não partilhamos, acrescentámos pressões para que "nos divertíssemos imenso" e avaliámo-nos com olhos muito duros. E depois temos de começar de novo, porque o ano começa e queremos manter todas as resoluções que não mantivemos no ano passado. Um professor britânico calculou há alguns anos que a terceira segunda-feira de Janeiro era o dia mais triste do ano, e é por isso que lhe chamam "blue monday". Para além das razões que já mencionei, há a encosta de Janeiro, a falta de motivação, o frio, entre outras. Quanto é que vamos permitir que esta "triste segunda-feira" nos afete? Quanto é que vamos "chicotear-nos" pelas nossas resoluções não cumpridas? 

Sejamos mais benevolentes nesta ocasião. Vamos dar-nos um pouco de margem de manobra e muita paz e paciência. Ainda faltam 12 meses neste novo ano para se fazer muita coisa, embora provavelmente vamos estragar tudo em mais do que uma ocasião. Podemos até decidir quando começa e termina o nosso ano, para que possamos começar com menos pressão quando for necessário, e para que possamos espalhar o amor que reservámos para o Natal durante o resto do ano. Vamos ser melhores este ano, mas também connosco próprios. 

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