Pode a velhice ser considerada património cultural da humanidade? Antes de argumentar que sim (spoiler), vou introduzir alguns conceitos que penso que podem ajudar-nos a chegar à reflexão que quero partilhar hoje. De acordo com a Real Academia Espanhola (RAE), o património histórico é o conjunto de bens de uma nação acumulados ao longo dos séculos e que, devido ao seu significado artístico, arqueológico ou outro, é objeto de proteção especial por parte da legislação. Mas o que é o património cultural (conceito, aliás, esquecido pela RAE)? Bem, depois de uma pesquisa na literatura, um livro recente sobre o assunto indica que "o património cultural de uma comunidade, dotado de múltiplas manifestações materiais e imateriais, é a sua identidade social e histórica (...). A sua preservação, portanto, não consiste apenas em prolongar a existência de um bem material ou de uma prática cultural, mas em atender às construções sociais que se formam em torno deles e como estas se adaptam à passagem do tempo". Bem, uma descrição um pouco longa, mas que nos pode ajudar a situar o assunto.
A minha interpretação, como sociólogo convicto, é que o património cultural (e refiro-me aos seus aspetos mais intangíveis) é um dos elementos de base da sociedade, que nos ajuda a sentirmo-nos parte do grupo e que nos recorda não só o nosso caráter social partilhado, mas também o facto (tão simples, mas por vezes tão complexo) de que viemos, como sociedade, como cultura, de algum lugar. Por outras palavras, não surgimos como uma geração espontânea, mas o que temos e somos como grupo humano é, em grande medida, uma herança do que muitos povos antes de nós tiveram, foram e desenvolveram.
O que acabo de definir é, na realidade, a sociedade. Quando dizemos que a sociedade é mais do que a soma dos indivíduos, estamos a falar das relações que se formam entre eles, das interacções diárias, mas também das estruturas que se criam e da memória partilhada. Porque é a memória partilhada que nos ajuda a compreender a estrutura que rege hoje o nosso quotidiano.
Para simplificar estas ideias: somos porque fomos. Nesse sentido, desprezar a nossa memória partilhada, o nosso conhecimento acumulado, é desprezar tudo o que somos.
O que é que acontece? Porque somos seres finitos (felizmente: viver para sempre parece-me uma chatice, embora assim ainda possamos ter tempo para pagar a hipoteca), quando falamos de memória partilhada temos de pensar naqueles que nos antecederam. Basicamente, podemos saber o que aconteceu através dos livros, das histórias, mas também através de pessoas que têm memórias de tempos passados porque os viveram, porque os adquiriram dos seus pais e avós (de idades anteriores). Quando desprezamos a velhice e o envelhecimento, estamos de facto a desprezar esse conhecimento partilhado e ainda vivo em pessoas que viveram tempos anteriores (e tão diferentes) aos nossos. A fonte bruta da nossa identidade comum.
E agora, se partirmos desta visão, poderá a memória das pessoas, o conjunto de memórias, ser considerado um bem a preservar? E porquê defender esta ideia?
Estamos num momento de certas incertezas, polarizações e tensões, mesmo sem nos referirmos aos horrores que estão a acontecer neste momento. Uma das tensões é a que se formula em torno da questão do envelhecimento, assumindo sempre que o aumento do número de idosos em relação ao número de jovens equivale a algo negativo. Ouvi um homem dizer, de forma determinada, que o envelhecimento significava uma perda de ideias, de criatividade e de produtividade. Para além do erro desta pessoa (e de tantas outras) sobre o que é o processo de envelhecimento (como se envelhecer equivalesse a uma espécie de desaparecimento progressivo do que somos e em que, além disso, não somos capazes de aprender nada de novo), e do carácter infeliz de uma opinião tão discriminatória, parece-me que ela se baseava numa forma de entender o valor das pessoas que não é a mais correcta. Na minha opinião, parte mesmo de uma forma de entender a riqueza da sociedade que não é a verdadeira. Mas, para além disso, esqueceu completamente a dimensão do património cultural, ignorando esse "património histórico cultural vivo" que é a memória dos idosos.
O facto é que, enquanto isto acontece, na União Europeia, em Espanha, no mundo, estamos a dedicar esforços, programas e investimentos à manutenção do património imaterial. Por exemplo, o Conselho da Europa e a Comissão Europeia falam da proteção do "Património Vivo" ('Living Heritage'), referindo-se às práticas, conhecimentos e técnicas que foram transmitidos de geração em geração e que ainda hoje são utilizados.
Estas organizações propõem como facilitar a acessibilidade universal à cultura e como o envolvimento da sociedade na gestão do património cultural pode favorecer a inclusão social, a democratização e a governação cidadã. Como se isso não bastasse, mostram como a proteção do património imaterial é positiva para a sociedade e até para a sustentabilidade dos territórios. Porque não valorizar aqueles que são os transmissores naturais deste património imaterial, deste conhecimento? Porque não considerar este um dos valores da velhice, de viver mais tempo, da riqueza que a longevidade pode oferecer?
Podemos, evidentemente, continuar a limitar-nos a medir a riqueza das nações com base em indicadores puramente económicos, ou simplesmente a falar de Produto Interno Bruto sem pensar muito mais nisso. Podemos continuar a falar de património imaterial como se fosse algo um pouco vazio, algo mais associado à dimensão da imaginação do que à dimensão do que já foi vivido e do que está preservado na memória de muitas pessoas e que ainda não foi transmitido. Mas, perante isto, podemos também reivindicar a importância da velhice, da longevidade, na melhor e maior preservação do que fomos enquanto sociedade, pensar nos idosos como elementos de transmissão de aspetos essenciais da identidade. Sei que isto pode ser também um fardo pesado, mas ajudar-nos-ia a valorizar melhor aqueles que são, insisto, transmissores vivos naturais da nossa história e da nossa identidade.
Se a promoção do acesso à cultura pode ser um elemento de dinamização cultural nas zonas mais desfavorecidas e nos grupos em risco de exclusão social, e se o património cultural é considerado um elemento de coesão social e, até, de fixação da população e de preservação da identidade cultural num mundo globalizado (fonte); Proponho que a velhice seja considerada como um dos potenciais elementos de transmissão cultural, que será fundamental, se lhe dermos os espaços adequados de participação intergeracional, para obter uma melhor adesão das nossas sociedades num contexto de globalização em que estamos todos um pouco perdidos.